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Filme de David Bowie: é um bom documentário?

Atualizado: 3 de jan. de 2023

David Bowie foi um artista único, versátil, inteligente, excêntrico, com uma mente que transitava entre os seus processos de criação, de certa forma, metódicos e o caos total. A ordem em meio à desordem é a própria retratação do filme Moonage Daydream, que faz o público mergulhar sensorialmente numa espécie de simulador da mente da celebridade, mas nem tudo são flores alienígenas.


Diferentemente da maior parte dos documentários, a narrativa não é construída a partir de depoimentos de pessoas próximas ao artista (não há depoimentos, inclusive). O diretor fez com que o seu acervo de mais de 5 mil arquivos sobre a vida de David se transformasse em um filme reflexivo e poético, que, inúmeras vezes, peca no quesito biográfico. Com excelente ritmo em praticamente todo o tempo (exceto por volta dos 15 minutos finais), a obra não aborda como Bowie chegou à fama, mas sim como funcionava a mente dele e as questões existenciais e complexas que carregava na década de 70 a respeito de Deus, crenças impostas, sabedoria, normatividade de gênero, bissexualidade, sexualidade fluida, dentre tantos outros temas que nos dias de hoje ainda são pouco entendidos e tidos como tabu pela maior parte do planeta. Tudo isso com uma maestria filosófica que torna o assunto fácil e, ao mesmo tempo, não tão simples de entender, com bases latentes de grandes gênios como Nietzsche, que eram algumas importantes referências para o artista. E isso era Bowie: o simples e o complexo. Aquele que movia o mundo por suas perguntas, mas que não suportaria encontrar algumas respostas. Aquele que queria tanto caber em alguns conceitos para não caber em conceito algum. Aquele que "poderia ser budista na terça, mas só queria saber de Nietzsche na sexta." Questionador nato. Questionador. Portanto, inteligente.


O também musical é repleto de simbologia por todos os lados (a começar pelo título da obra), as quais, se explicadas, deixariam este texto extremamente maçante, mas que certamente cumprem seu papel ao perpetuar o inconsciente de cada olhar voltado à tela. Fascina, do ponto de vista curioso do espectador que necessita entender a mente de um artista de verdade (se é que algum poderia ser considerado de mentira), mas desaponta se vista pelos olhos de quem realmente busca compreender a história da vida de David, suprimindo informações essenciais sobre ela (erro, na minha visão, perdoável somente se fosse cometido em uma obra baseada em fatos reais, como ocorreu em Elvis, não nesta, que é documental). Além de não abordar de forma alguma nem causa, nem data do falecimento do artista (ocorrido em 2016), ilustrar de forma muito sutil a sua infância e não mencionar como se deu o seu sucesso, o excesso de licença poética suprime fatos inegáveis da sua trajetória, como o seu primeiro casamento e o nascimento dos seus dois filhos. A narrativa simplesmente atropela isso, transmitindo a irreal sensação de que Bowie apenas se casou com a sua segunda esposa, Iman, e jamais teve herdeiros. Péssimo!


O seu casamento com Angela Bowie durou 10 longos anos, sendo todo esse tempo distorcido (arrisco dizer) pelo "documentário", como se Bowie fosse um quase eterno solteirão. O filho do casal, Duncan Jones, simplesmente não existe na obra, assim como o nascimento de Alexandria Zahra Jones, a caçula de David, fruto de seu casamento com Iman, que, por sua vez, é retratada como o único amor da vida do cantor, com quem ficou casado até os seus últimos dias. Verídico o fato de que Bowie confessou em uma entrevista que nunca se apaixonou pela primeira esposa, mas impossível afirmar completa inexistência de amor da parte dele por ela, que foi uma personagem tão significativa da sua história (deixo as pesquisas sobre as polêmicas do casal por conta de vocês, e adoraria vê-las nos comentários). Por mais imersiva sensorialmente e disruptiva que pretenda se tornar, a obra peca. Peca muito.


Em contrapartida, apesar de não apresentar informações imprescindíveis para os que desejam entender a história completa do astro (como, por exemplo, sua falsa heterocromia), o filme aborda melhor a relação do compositor com o seu irmão mais velho e busca fugir do óbvio, mesmo nos negando respostas a perguntas que nos fazemos o tempo todo como espectadores. Além disso, enaltece a evolução da estrela e de sua própria vida à medida em que Bowie envelhece (algo incrivelmente incomum de ocorrer em uma indústria repleta de preconceito etário e mortes prematuras por uso de substâncias). Inegavelmente, o musical foca com maestria na mensagem da melhora e do encontro de um ser humano consigo mesmo, mas é raso, enquanto filme, ao não expor com clareza os problemas envolvidos. Seria uma tentativa de manter uma imagem de "bom moço excêntrico" do astro e apagar as inúmeras polêmicas sobre sua vida, como a acusação de agressão que sua primeira esposa relatou ter vivido? Seria muito complicado expor o que realmente ocorria quando o assunto era magia negra na vida do artista, deixando apenas uma frase subentendida em um filme extenso? Ou comprometeria a imagem do cantor mostrar com profundidade o submundo das drogas (sobre o qual ele própria falava em vida de como foi ter saído depois de ter afundado com todas as forças)? Seria perigoso ir fundo nas paranoias que rodeavam a sua mente? Dica final: esse é um documentário aprovado pela família do astro – e famílias nem sempre desejam a verdade. Pelo menos esta foi a mais lógica linha de raciocínio que encontrei para explicar o tamanho de tantas supressões (mas compreendo que a minha visão não é uma verdade absoluta).


Um filme muito bom. Um documentário distorcido.*


Nota: apesar de saber que documentário é uma representação parcial e subjetiva da realidade, mantenho a minha opinião.


Esta obra foi assistida à convite do Espaço Z.




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